domingo, agosto 19, 2007

Visita

Por hábito vou lá sempre ao fim-de-semana, mais ao Domingo que é dia de acordar tarde e tomar o pequeno-almoço acompanhado de jornal.
Encosto o carro e dirijo-me aos portões de ferro pesadíssimos, verdes, que estão abertos apenas algumas horas por dia. Até há bem pouco tempo o horário era bem mas alargado. Cortes do orçamento, disseram eles. Não há dinheiro para manter lá seguranças que tomem bem conta daquilo.

É uma descida íngreme. Os dedos das mãos não chegam, por vezes, para contar as senhoras de cabelo branco e bengala que descem comigo aquele pedaço de metros até chegar lá abaixo. Custa-lhes! Isso vê-se nas suas caras erodidas pelas décadas e décadas de vida. Na maioria das caminhadas sinto-me tentada a ajudá-las a chegar lá abaixo, levá-las pelo braço e fazer a boa acção do dia. Depois penso que muito provavelmente não quereriam a minha ajuda. Acho mesmo que tudo aquilo faz parte de um ritual que querem manter solitariamente, um ritual que lhes confere uma força maior quando chegam ao local certo.

Eu desço sempre apressadamente. Aquele pedaço de alcatrão gasto não me aquece a sola dos pés por muito tempo. Passo a passo vou ficando mais perto dela. Geralmente levo uma flor na mão e, não raras as vezes o vento que me acompanha no caminho ajuda a que uma ou outra pétala da rosa branca fique para trás. É quase sempre uma rosa branca. Ela adora rosas brancas. Fica-lhe bem a cor, a forma o aroma da rosa. A delicadeza e fragilidade desta flor assenta-lhe como uma luva.

Vou gastando mais uns passos e vou encontrando mais pessoas espalhadas por ali. Quase todas carregam flores. Grandes ramos de flores ou, como eu, apenas uma. Acho que uma flor basta. Gosto de coisas simples e eu sei que ela também gosta. Porquê ser tão ostensivo num sítio destes se ali encontramos um mundo de tranquilidade e simplicidade? As pessoas gostam mesmo de complicar. Nunca hei-de entender.

Mais uns passos e chego finalmente onde ela está sempre à minha espera. Ali quieta e sorrindo sempre para mim. Sempre rodeada de flores e borboletas que tentam alimentar-se nelas. A primeira coisa que lhe digo é olá.
- Olá Avó!
E ela retribui o cumprimento. Mesmo sem falar eu consigo sempre ouvir o seu tom doce e maternalista. Depois fico ali parada um tempo sem dizer mais nada. Quieta, com a flor na mão. E ela sorri. É tão bom vê-la sorrir!
Fico aborrecida por não haver ali algo próximo que me sirva de poiso. Tenho de ficar sempre em pé ao lado dela. Mas aguento-me. Passeio os meus olhos ali em redor e lá continuam as pessoas com as flores na mão. Umas choram, outras rasgam um sorriso de orelha em orelha quando recebem um olá igual ao que eu recebo sempre. Prefiro sorrir a chorar. Mas também chorei, logo no início. Agora apenas sorrio. Sorrio porque ela sorri também e sempre odiou ver-me chorar.

Dou-lhe finalmente a flor e ela agradece. De imediato uma borboleta descansa as asas na rosa branca e suga o pólen que esta lhe oferece. Tenho sempre imensas coisas para lhe contar. Umas coisas boas, outras menos boas. Ela ouve-me atentamente, alternando uns sorrisos com expressões mais sérias. Aos poucos e poucos vou ficando sem assunto, mas mantenho-me ali perto dela. Quando não há mais nada para contar da semana que passou começo a lembrar-me dos minutos que passámos juntas uns anos atrás. Desde criança que ela me aturou birras e mudanças súbitas de humor. Mas eu não lembro isso, lembro apenas aquela carne que ela me fazia quando a visitávamos na aldeia onde nasceu. Aquela carne feita na panela de ferro, à lareira. Se fechar os olhos hoje ainda consigo sentir o sabor daqueles pedaços pequenos e tenros que ela me preparava sempre com tanto carinho, ao som das badaladas do sino da igreja que encimava uma torre altíssima, mesmo em frente à nossa casa cor-de-rosa, velhinha. Já nessa altura, a altura em que comia essa carninha tinha eu uns sete ou oito anos, ela vestia de negro, sempre negro. O luto pelo meu avô era carregado por ela desde 1985, e sabia eu que o haveria de carregar até ao seu último suspiro. A gata que ela tinha na altura era negra como a roupa que lhe resguardava o corpo. Ela sentava-se nos bancos de madeira baixinhos, em frente à lareira e, num movimento quase simultâneo a Xixa – assim se chamava a gata negra – pulava-lhe para o colo e enrolava-se, quietinha, ronronando por umas festas no lombo rechonchudo. Miava baixinho e a minha Avó deixava-se levar, e passava as mãos calejadas pelo pêlo negro e reluzente da gata. Como qualquer criança, sentia a falta dos meus pais que estavam a mais de 300km de mim. Chorava todas as noites de saudades mas bastava eu deitar-me junto a ela para tudo parar e tudo esquecer.

Passaram já uns minutos e eu continuo ali perto dela.

Sem trocarmos palavras que alguém pudesse ouvir, despeço-me dela. Digo-lhe sempre um até já. Sei que ela está sempre ali à minha espera. Ali descansa apenas o corpo de uma mulher que servirá sempre de exemplo para mim. Apenas o corpo e só o corpo, porque o espírito anda sempre lado a lado comigo. Acompanha-me para todo o lado.

Até já Avó!

1 Comentários:

Blogger Mar disse...

Nada se compara ao sorriso doce e tranquilo de uma avó, aos olhos meigos e cansados, ao colo quente. Que saudades eu tenho da minha avó. Às vezes sonho com ela.

Parabéns pelo belíssimo texto.

11:18 da tarde  

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